terça-feira, 9 de junho de 2009

A história está pronta? Sim ou Não?


Há três maneiras de responder essa pergunta; três cosmovisões que tentam explicar o mundo, o desenrolar da vida e a esperança futura. Para entender essas cosmovisões, comparemos a criação do universo com a produção de um filme .

Eis as três possibilidades:

1. O universo não é um filme - não há seqüência de eventos. Nessa visão o mundo não é uma construção; toda história e realidade surgiram prontas em um único ato criador; Deus contempla presente, passado e futuro num Eterno Agora. O conceito de liberdade é ilusório, porque não há construção nenhuma ainda por acontecer– tudo já está definido, o futuro é algo já “acontecido”, portanto, imutável e plenamente conhecido.

2. O universo é um filme, porém já criado e produzido. “Podemos nos lamentar sobre as partes ruins, rir das partes engraçadas, mas podemos apenas partilhar a experiência; nada do que fazemos pode mudar o que vemos. Deus criou a terra no tempo, mas ligou o futuro daquela criação à sua mente que tudo sabe; assim o futuro está fixado e é imutável. Essa visão difere da primeira apenas porque permite que o tempo seja um elemento distinto e real em um processo que, se não fosse por isso, seria determinístico”.

3. O universo é o cenário de um filme em andamento – “O diretor sabe muito do que acontecerá no filme, mas os detalhes concernentes à cenas e aos eventos menores são opções dos atores. Esse é o modelo do mundo no qual o tempo é real, e o futuro tem opções dentro de certos limites definidos divinamente” (Pratney, 41).

No primeiro modelo existe fatalismo e a vida acontece agrilhoada às rodas do destino sem ir a lugar nenhum; simplesmente gira sem qualquer propósito – muitas religiões orientais, o budismo por exemplo, se aproximam mais desse modelo.

No segundo modelo, o desenrolar da história segue trilhos fixos e, igual à primeira, nada ou ninguém pode alterar seu curso previamente fixado por Deus. Mulheres e homens podem gozar do privilégio de participar no filme, mas a história chegará ao seu destino com ou sem a participação humana.

No terceiro modelo, Deus ainda não construiu tudo e convida os seres humanos para serem seus “cooperadores” (essa expressão é do apóstolo Paulo, mas eu também gosto de “artesãos”) da história. Não foi uma farsa de Deus dar ao primeiro casal o privilégio de nomear animais e cuidar do jardim.

Nesse modelo, Deus criou o universo, mas livremente decidiu (porque não havia necessidade) que a história seria construída, digamos, “a quatro mãos” – as nossas e as dele.

Algumas culturas acreditaram – a grega foi uma delas – que o mundo existia e fluía a partir de forças impessoais, mas a narrativa judaica da criação demonstra que o universo aconteceu como resultado de um projeto amoroso; por detrás do primeiro “fiat” havia um Deus amoroso.

Concordo com Juan Luis Segundo quando afirma:

“Cada ser humano está estruturado para inventar seu próprio caminho num universo incompleto e colocado nas mãos humanas. Pelo menos em relação a seu sentido. Em outras palavras – em princípio – àquilo que o homem decida fazer com ele e dele” (Segundo, p. 133 - o grifo é meu) .

O significado mais profundo da narrativa bíblica é que Deus, na verdade, apostou na construção da história com a participação humana. Essa aposta, mesmo sabendo da fragilidade e das contingências do humano (ele se lembra que somos pó), foi verdadeira, nunca um jogo.

Alguém poderia negar e dizer que tal parceria seria impossível já que toda a raça humana se corrompeu e só um louco confiaria nela. Mas, na outra face da mesma moeda, torna-se absolutamente fantástico saber que o Todo-Poderoso amorosa e livremente decidiu dividir com gente infinitamente menor do que ele a concretização da história, que aqui chamamos metaforicamente de “filme”.

Volto a Juan Luis Segundo e reverentemente transcrevo suas observações sobre o diálogo construtivo entre Deus e seus filhos:

“O Deus ‘eterno’ chama os homens para dialogar com ele dentro dessa história. Sabemos que todo o universo foi criado para que este diálogo possa existir. Ou seja, para que cada resposta do homem a Deus seja, ‘antes’, apaixonadamente aguardada e ‘depois’ respeitada.

Obviamente, nossa imaginação, essencialmente temporal, não nos mostra como a liberdade de Deus dispôs de seu próprio ser, de modo que possa ouvir, emocionado, com um amor de infinita fidelidade, e com a surpresa contida e inscrita em todo ato de liberdade, a resposta de seu interlocutor.

Não estamos feitos para imaginar um amor, uma surpresa, uma criação sem tempo, sem um antes e um depois. Mas, estamos diante da alternativa lógica: admitimos que tem sentido falar de Deus em termos de ‘sentido’ – ou seja, em categorias temporais – , ou eliminamos o amor, a surpresa, o sentido e, obviamente, todo planejamento divino do universo.

E como insinua Sartre, na frase de As Moscas, várias vezes citada, negamos um Deus monstruosamente impassível e indiferente, para poder dar um mínimo de sentido e dignidade a nosso universo e a nossa liberdade.

Também a teologia joanina do Apocalipse, na última de suas cartas às Igrejas da Ásia Menor (Ap 3.20), apresenta Deus numa atitude que, com toda a lógica, deve estender-se a todo homem livre: ‘Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo’.

A frase na íntegra não teria o menor sentido fora da dimensão temporal... já fiz alusão a esta atitude de Deus para com o homem livre, e a dependência (livre, é claro) que Deus quis ter em relação ao homem. Está vibrando nessas duas letras: ‘se... ‘, que ficariam desprovidas de sentido e incompreensíveis se esse ‘se’ (condicional) não marcasse um antes e um depois na situação – dialogal – de Deus com o ser livre.

Mas, neste momento, interessa-me destacar o que supõe a segunda parte da frase. ‘Estar à porta... ’ significa esperar. E, obviamente, não há espera possível sem tempo. Que será, porém o que Deus espera? Nem mais, nem menos que a boa acolhida de seu interlocutor: entrar, sentar-se à mesa e cear com ele.

Isto fica ainda mais em destaque pelo fato de que a vantagem que o homem via tirar de uma resposta positiva fica como que separada daquilo que Deus espera: ‘... e ele comigo’. E que isto deveria ser esperado (ou apreciado0 pelo interlocutor. Mas, de qualquer modo, a ceia comum iguala a importância do que participam dela. E Deus também espera que essa igualdade modifique a atitude do homem para com Deus, com o mundo e com seus semelhantes” (Segundo, p.544 - grifos meus) .

As Escrituras repetem que Deus fielmente pede que seus filhos não rivalizem com ele na construção da história, mas que se mantenham parceiros. Os profetas choraram lágrimas divinas, porque a história não seguia os rumos antecipados pelo Senhor.

Para Hannah Arendt, a sublime condição humana reside em sua capacidade de construir a história através de três atividades fundamentais: labor, trabalho e ação (Arendt, p.15).

O labor corresponde ao processo biológico do corpo humano, que sustenta a vida - o coração bate, os rins filtram e o cérebro comanda - Gasta-se energia para viver.

O trabalho é o “artificialismo da existência humana”, porque transforma a realidade do mundo natural. O ser humano entra no mundo, o transforma e é por ele transformado. No poema de Vinicius de Moares:

"Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção".

Mas, a ação é “a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo”.

No que Arendt chama de ação, somos autores, criadores (logicamente finitos, mortais e falhos) arquitetos, poetas, romancistas, teólogos, médicos, inventores, atletas. Na ação, transcendemos e damos à nossa existência um valor para além do temporal. Nossa existência tem surpresa, "maravilhamento" - num gesto de gratuidade do criador, podemos fazer a vida bela.

Deus creator” criou o “Homo Faber”, para que ele só sobreviva biologicamente (labor) , não só realize (trabalho); mas, acima de tudo, crie o inédito (ação).

Voltemos a Arendt e com ela, celebremos a fantástica possibilidade de poder fazer história:

“É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não pode ser previsto a partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Este cunho de surpreendente imprevisibilidade é inerente a todo início e a toda origem...

O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre surge sob o disfarce do milagre.

O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo.

Desse alguém que é singular, pode-se dizer com certeza, que antes dele não havia ninguém. Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais” (Arendt, p.190 - grifos meus).

Numa história inacabada, Deus continua convidando homens e mulheres para fazerem fluir a justiça como um rio caudaloso num reino da paz.

“Quem enviarei? Quem irá por nós?” – Is.6.8.

Soli Deo Gloria.
Ricardo Gondim

Bibliografia:
Pratney, Winkie - A Natureza e o Caráter de Deus -Editora Vida.
Segundo, Juan Luis - Que Mundo? Que Homem? Que Deus? - Paulinas.
Arendt, Hannah - A Condição Humana - Forense Universitária.



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